sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Receitas



Dizem-me que não sou normal
Parece que tenho uma patologia qualquer
Que há qualquer coisa que corre mal

Dizem-me que tenho de tomar comprimidos
Concentrados de boa disposição
Que acabam com o humor de cão

Dizem-me que não tenho o pensamento estruturado
Receitam-me pílulas milagrosas
Que dizem não serem perigosas

Dizem-me que tenho de fazer terapia
Que sou um caso border-line
Que sofro de apatia

Quem disse que quero ser normal!?
Dizer coisas com sentido!?
Quero portar-me mal!

Malditos comprimidos!
Maldita boa disposição!
O perigo está na precaução...

Teria Freud uma mente estruturada?
Teria Pessoa um pensamento coerente?
Eu quero viver perturbada!

Eu gosto de andar no arame
Eu gosto que a tristeza me visite
O copo que se derrame!

Quem são esses senhores?
Donos da normalidade
Que se crêem uma sumidade

Ofereço-lhes de bom grado
Um cocktail de comprimidos
Para não serem convencidos

Porque não me receitam sexo?
Porque não me receitam sol?
Porque não me mandam plantar um girassol?

Para quê culpar a minha infância?
Para quê deitar-me num sofá?
Eu quero é manter distância...

Os anti-depressivos deprimem-me
Os reguladores de humor aborrecem-me
Malditas sejam todas essas mezinhas!

Eu quero é fazer amor
Escrever poemas
Cheirar uma flor

Busca



Perdi os meus poemas
Não os consigo encontrar
Procurei por todo o lado
em todos os cantos
e recantos
Onde se procura um poema?
Por onde se esconde um poema?
Alguém os viu?
voei entre os pássaros
corri entre os cavalos
saltei entre os coelhos
mas não encontrei um poema
procurei-os debaixo das pedras
mergulhei no fundo do mar
entre as rochas
sobre as ondas
onde estão os meus poemas?
Como buscá-los?
Onde se esconde a poesia?
Talvez entre a maresia
Talvez atrás duma orelha
Talvez debaixo duma telha
Ofereço uma recompensa
A quem vir os meus poemas

Nada

hoje

não tenho nada para vos dizer

é um facto que neva no meu jardim

e que o gelo queima as minhas folhas,

e que o frio gela o percurso de uma gota

que não chega a cair na minha face

Desejos




Espero que te lembres de mim

no final de um dia de ilusões

Espero que te lembres de mim

numa tarde feita de pedras quentes

Espero que te lembres de mim

no meio de um mar de gente


Espero que me procures

quando eu de ti me esqueça

Espero que me procures

em dias de tremenda busca

Espero que me procures

na ultima pagina do livro


Desejo ver-te em dias de fogo

em que o mal é reduzido a nada

Desejo abraçar-te longamente

depois de te zangares com o mundo

Desejo imitar-te os passos

em dias de valentia


Desejo-te em dias calmos

em que só o vento te distraia

Desejo-te em tardes turbulentas

em que só um abraço te acalme

Desejo-te esta noite junto de mim

para compartir os pequenos pedaços do dia

Solidão




Estou só

e de mim não saio

nesta noite sonâmbula

espero por quem não vem

estou só

as mãos geladas

procuram o calor da palavra

estou só

e não tenho lágrimas

que me protejam do nada

procuro-te

nas sombras da noite

no fundo do rio

no fim das minhas mãos

procuro-te

para que me escutes

para que me dispas

e me aqueças

procuro-te

entre gentes

que não me dizem nada

a quem não me entrego

estou só

e a mim me reduzo

neste final de noite

estou só

e as mãos tremem-me

abraçando o nada

estou só

nada tenho

tudo procuro

Tu




Pedem-me que escreva poemas

Eu queria escrevê-los

oferecê-los envoltos em suavidade

como morangos em caixas muito arrumadinhos

e bem distribuídos

que cada poema meu fosse parte do meu respirar

em dias de paz e sorrisos

mas és tu quem escreve por mim nestes dias

tu que não descansas quando eu durmo

tu que estás atenta quando eu de ti me esqueço

tu que me despertas a meio da noite e me segredas

num murmúrio bem dentro de mim

- desperta-te! liberta-me!

és tu que caminhas arrogante, entre gentes, que não te conhecem

e te disfarças em mim

és tu...que me tomando o pulso

escreves poemas que cortam o papel

que me fazem gritar para dentro de mim

num rugido afónico:

não quero mais poemas teus!

és tu que me olhas no escuro

que me envolves em medo

és tu que me passeis pela trela em dias em que não durmo

que me aqueces o estômago em dias de fome

és tu que vês o que outros escolhem não ver

que gritas para dentro de mim

e o teu grito estilhaça-me

fragmentos de mim espalham-se pelo chão

e eu os recolho um a um

tentando encontrar-me nessa manta de retalhos

que teço em ritmo com linha de dor

mas essa manta já é outra de mim

quanto de mim reconheceram em ti

quanto de mim já se confunde em ti

poderia eu fugir...esconder-me atrás de sombras

luto contigo e por ti

todos os dias

e o nosso sangue mistura-se

e o meu cuspo sai da tua boca

e as minhas lágrimas são a tua saliva

e com a tua boca mastigas a minha razão

e regurgitas-me vezes sem conta

e sempre que saio de dentro de ti

é um esqueleto que se estatela no chão, nas pedras

músculos que todos os dias reaprendem o seu movimento

eu não me quero confundir-me contigo

que as pessoas me vejam e pensem que falam contigo

que te leiam quando me lêem a mim

tu és o meu sangue cuspido por aqueles que me ferem

a minha parte mais sangrenta

a minha raiva engolida

em seco

eu te vomito em nome dos deuses

e a ti regresso como

cão a seu dono

tu és aquela a quem não ouso acordar

a quem embalo

com as mãos a rodearem-me a cabeça

arranco-te de mim todos os dias

e a ti regresso todas as noites

porque tu me reconheces como sangue do teu sangue

semente da tua árvore

fruto do teu ventre

novamente me rebentas por dentro

estilhaços de mim voltam a espalhar-se no quarto

recolho um a um os restos de mim

com um cuidado trémulo

com medo de me cortar

junto , coso esses pedaços

mas já não me reconheço nessa manta de retalhos

partes de mim se perderam pelo chão

pela luz que nos trespassa

mostro a manta a quem me ama

digo

vês esta sou eu agora

gostas?

tu deliras com a pergunta

saltas pulas

rebolaste no chão numa gargalhada que me rompe os tímpanos

contigo consigo escutar o coração de outros

e o meu bate como se fosse o seu último bater o derradeiro

contigo ouço conversas que sem ti eram meros murmúrios

contigo o ruído das ruas torna-se ensurdecedor

contigo passo horas e horas a discutir a minha razão

sempre me ganhas na loucura

há dias que estou tão cansada desta luta

que penso

deixa-te levar

deixa-te ir

e sonho que descanso em ti

que me fundo em ti

que me esqueço de mim

e assim de mim não sentirei falta

os outros que a sentem que se lixem

eu só preciso de ti

tu serás meu alimento

meu respirar

minha outra vida

dizem-me que corro o risco de morrer contigo

mas que sabem eles da morte e de ti

eles não sabem que não há quem me ame tanto como tu

que contigo somos nós

às vezes duvido que eles saibam realmente o que seriamos nós

dizem que me afaste de ti

que te destrua

que te mastigue

que te cuspa para fora de mim

que te arranque de mim

que te ampute

mas que sabem eles de mim sem ti

se só me conhecem contigo

mal sabem eles que te necessito de noite e de dia

que sem ti não veria peixes e flores a rodearem-me

em danças de luz

não sabem que sentiria a tua falta

que te sentiria como um membro amputado

que se te arrancasse de mim...eu morreria também

todos os dias me pergunto se quero morrer de ti ou sem ti

há dias em que te arranco do meu coração

te arrasto pelo chão

te pontapeio

te massacro

te destripo

para logo me arrepender

e te cuidar

te embalar

te curar

te cuidar

como se fosses mãe

como filha de ti

que responder quando me perguntam se te quero deixar ir

a morte é bem mais doce qunado me apertas contra ti

em ti sou mais de mim

contigo sinto mais de mim

sem ti secaria por dentro

sem ti sou uma sombra de mim

que pretendem de mim aqueles que te rejeitam a ti

que sabem eles de mim...sem ti

serei eu os restos de ti?

és tu a minha cauda

o meu pincel

o meu amuleto

a minh bola de cristal

as asas que não se queimam

o fogo que não se apaga

quero tragar-te todos os dias

como uma ostia

rezar contigo dentro de mim

às vezes canso-me de me queimar na tua chama

mas sempre volto a ti

é enrolada em ti que durmo todas estas noites

hesito em escrever porque de mim sais.

das pontas do meus dedos

para o papel

como pingos de sangue

que incomodam o leitor

e entre letras o meu... o teu sangue vai pingando

e quem me lê detecta-te em mim

depois há aqueles que adoram que tu use pregada ao peito

a segurar-me o cabelo

a amparar-me o andar

a esses também os gosto de ouvir

sorrio

finjo que sou tu

que sou tua

e nesse momento acredito que sou tua

irmã siamesa

dizem-me que posso viver sem ti

como se de uma pequena cirurgia se tratasse

não vêem que o meu sangue precisa do teu

que respiro pela tua boca

que leio com os teus olhos

que se te tenho de vez em quando adormecida

é para que descanses

e te despertes com todas as tuas forças em mim

que seria do meu eu sem o teu?

estou cansada de ti

mas estou exausta de mim

tu és o meu último folgo

porque tu és o que sou